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Cultura popular: pequena discussão te�rica

  1. Introdução
  2. O popular e sua cultura
  3. Cultura Popular no Brasil
  4. Cultura popular: nossa inserção no tema
  5. Conclusão
  6. Bibliografia

INTRODUÇÃO:

Este trabalho tem como objetivo realizar uma discussão de car�ter introdut�rio, em torno da questão da cultura popular. Ainda que com intenções de ser uma introdução aos marcos te�ricos desse tema tão amplo, não podemos deixar de lamentar a ausência de algumas discussões e alguns autores que foram muito importantes para esse debate.

Gostar�amos, por exemplo, de ter discutido as teses do fil�sofo italiano e marxista Antonio Gramsci, que com suas teses de luta contra-hegemônica, via na cultura popular um campo potencialmente rico para a luta social. Outro autor marxista que gostar�amos de ter estudado � Edward P. Thompson, que no seu livro Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional, tenta demonstrar, atrav�s de m�ltiplos exemplos, o potencial ora de insubordinação, ora de acomodação das classes sociais inglesas do s�culo XVIII frente aos poderes hegemônicos de então. Seria interessante fazer este autor "dialogar" com o te�rico russo Mikhail Bakhtin, que conforme nossa cr�tica no final do cap�tulo O popular e sua cultura, via nesse momento a perda do seu potencial de oposição ao pensamento "oficial". Enfim, a lista de ausentes seria enorme se realmente quis�ssemos lev�-la a cabo. De todo modo, declaramos aqui estarmos conscientes das lacunas.

Não teremos em nosso trabalho nenhuma preocupação cronol�gica. A nossa intenção � de estabelecer um di�logo entre os diversos autores que abordamos. Os textos em alguns casos convergem, e em outros divergem, mas acima de tudo se iluminam mutuamente.

A primeira parte do trabalho � voltada para as discussões sobre a cultura popular formuladas predominantemente por autores não brasileiros. Alguns latino-americanos e a maioria por autores do continente europeu. As disciplinas as quais pertencem esses autores tamb�m são variadas: Antropologia, Hist�ria e Cr�tica Liter�ria, entre outras são os lugares acadêmicos de fala desses intelectuais.

A segunda parte tenta situar a questão da cultura popular no Brasil. Como ela foi tratada pelos diversos atores sociais, com vistas a auxiliar os seus discursos ideol�gicos. Vamos ver nesse cap�tulo a cultura popular como elemento importante para uma ação revolucion�ria atrav�s das pr�ticas do CPC; ou por outro lado ela servindo como lastro para a criação de um discurso identit�rio, como em S�lvio Romero.

Algumas vezes abordaremos diretamente a obra de um determinado autor, e outras o faremos atrav�s de outros autores. Temos consciência que esse tipo de expediente não ocorre sem os riscos da mediação feita por terceiros. De todo modo, visto o tempo ex�guo que dispomos, temos certeza que ele ser� �til para a consecução do nosso trabalho.

Faremos tamb�m uma r�pida incursão, atrav�s principalmente de J�sus Martin-Barbero, nas discussões sobre a emergência do "povo", no cen�rio pol�tico e cultural europeu a partir do s�culo XVIII.

Por fim nos deteremos no nosso objeto de pesquisa propriamente dito, a saber: a pr�tica do jongo, ou tambor na comunidade de Machadinha em Quissamã no norte do Estado do Rio de janeiro. A partir das falas de alguns integrantes do grupo de jongo, n�s detectamos um rico material no que diz respeito �s disputas simb�licas e materiais que ocorrem dentro da comunidade, ou desta em relação � cidade de Quissamã. Nessa questão temos tamb�m a pretensão de apenas esboçar os contornos de uma problem�tica que entendemos ser de grande profundidade, e que requer portanto, um aparato conceitual e te�rico da mesma magnitude.

O POPULAR E SUA CULTURA:

Para tratar da questão da cultura popular � preciso de in�cio saber que se est� lidando com um termo esquivo, dado a muitas definições e repleto de ambig�idades. Tentaremos, portanto, circunscrever essa expressão de modo a não deix�-la demasiadamente ampla e vaga.

Se fôssemos tomar como definição o que diz os verbetes dos dicion�rios, pelo menos em suas primeiras acepções, correr�amos o risco de não avançarmos muito. Isso porque tanto no Dicion�rio Aur�lio de L�ngua Portuguesa como no Dicion�rio Eletrônico Houaiss de L�ngua Portuguesa, encontramos primeiramente a id�ia de povo enquanto totalidade de um territ�rio ou de uma região. Somente na sexta acepção do primeiro e na oitava do segundo encontramos a id�ia de que "povo" se refere a uma determinada parte do conjunto total de participantes de uma sociedade. Assim conceitua o segundo dicion�rio mencionado: "conjunto dos cidadãos de um pa�s, excluindo-se os dirigentes e a elite econômica". H� nessa perspectiva a conceituação de popular por oposição, ou ainda, pela sua negativa. Cultura popular seria então um conjunto de pr�ticas culturais levadas a cabo pelos extratos inferiores, pelas camadas mais baixas de uma determinada sociedade.

O termo cultura nos parece, concordando com Peter Burke, ainda mais controverso. Burke nos fala de uma ampliação do conceito em tempos mais ou menos recentes. Escreve o historiador que at� o s�culo XVIII

O termo cultura tendia a referir-se � arte, literatura e m�sica (…) hoje contudo seguindo o exemplo dos antrop�logos, os historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber, andar, falar, silenciar e assim por diante (Burke,1989:25).

A ampliação do conceito de cultura mencionado por Burke, não parece gozar dos louros da unanimidade. � poss�vel perceber nessa conceituação uma tendência culturalista, que opondo praticamente, cultura a natureza, faz da primeira uma ocorrência universal, ou seja, todos os povos possuem cultura, e podemos ainda pensar que como desdobramento desse racioc�nio, se coloca a questão do relativismo cultural, ou em outras palavras: as culturas são �nicas e não pass�veis de serem comparadas valorativamente.

O problema desse racioc�nio, na opinião do antrop�logo N�stor Canclini, � que a abrangência do conceito proporciona dois inconvenientes: 1- apesar de ter produzido uma equivalência entre as culturas, ela não conseguiu dar conta das desigualdades entre elas. Ou ainda: de como as diferenças se transformaram em desigualdade. 2- na medida em que pensa todos os fazeres humanos como cultura, ela não d� conta da hierarquização desses fazeres e o peso distintivo que possuem dentro de uma determinada formação social (Canclini, 1983:28).

Canclini propõe então restringir o uso do termo cultura para a

Produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simb�lica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as pr�ticas e instituições dedicadas � administração, renovação e reestruturação do sentido (Canclini, 1983:29).

Ainda fazendo a cr�tica dos conceitos de cultura, Canclini se opõe as conceituações de inclinação idealista, que a vê apenas como ligada ao campo das crenças, dos valores e das id�ias. Canclini afirma que sua proposição de conceituação de cultura não se encaminha no sentido de identificar o cultural com o ideal, nem o de material com social, nem sequer imagina a possibilidade de analisar esses n�veis de maneira separada. Antes pelo contr�rio pois

Os processos ideais (de representação e reelaboração simb�lica) remetem a estruturas mentais, a operações de reprodução ou transformação social, a pr�ticas e instituições que, por mais que se ocupem da cultura, implicam uma certa materialidade. E não s� isso: não existe produção de sentido que não esteja inserida em estruturas materiais (Canclini, 1983:29).

A fil�sofa Marilena Chau� em sua obra Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil, faz primeiramente uma abordagem do termo atrav�s de sua etimologia. Dessa forma revela que o termo cultura vem do verbo latino colere que originalmente era utilizado para o cultivo ou cuidado com a planta. Por analogia o termo foi empregado para outros tipos de cuidados, como o cuidado com a criança ou puericultura, o cuidado com ou deuses, ou culto etc. cultura era então o cuidado com tudo que dissesse respeito aos interesses do homem, quer fosse material ou simb�lico. Para a manutenção desse cuidado era preciso a preservação da mem�ria e a transmissão de como deveria se processar esse cuidado, da� o v�nculo com a educação a ao cultivo do esp�rito. O homem culto teria então uma interioridade "cultivada para a verdade e a beleza, insepar�veis da natureza e do sagrado". (Chau�,1986:11). A partir do s�culo XVIII, mesmo momento em que segundo Burke houve o deslocamento no conceito de cultura, o termo vai se ligar a um outro, a saber, o voc�bulo civilização. Essa ligação se estabelecer� positiva ou negativamente conforme a linha de pensamento. Para os românticos enquanto civilização expressa artificialidade, convenção, "sujeição da sensibilidade e do �bom natural� aos espartilhos da razão artificiosa", cultura era "bondade natural, interioridade espiritual".(Rousseau apud Chau�, 1986:12). A partir do conceito de Rousseau percebemos o germe do pensamento romântico. Por outro lado a ilustração via positivamente a articulação dos dois termos, uma vez que eles concorriam para o desenvolvimento ou aperfeiçoamento do ser humano. A cultura era medida de uma civilização, não era concebida como natureza como viam os românticos, mas

Espec�fico da natureza humana, isto �, o desenvolvimento autônomo da razão na compreensão dos homens, da natureza e da sociedade para criar uma ordem superior (civilizada) contra a ignorância e a superstição (Chau�, 1986:13).

Percebemos a partir da explicação de Chau�, que a ampliação do conceito no s�culo XVIII da qual nos fala acima Peter Burke, estava mais ligada aos pensadores ilustrados, cuja reflexão, se encaminhava no sentido de perceber cultura justamente como não natural, pois a natureza era entendida, por essa perspectiva, como contingência e imobilidade, ou ainda como o "reino das causas mecânicas". A cultura por sua vez era invenção, mobilidade, ou "o reino humano da hist�ria".

� interessante notar que justamente no momento de definição dos estados nacionais, isto �, por volta do s�culo XVIII, ocorre na Europa um movimento de "resgate" das produções culturais do povo. Esse � tamb�m o momento da revolução industrial e de um forte impulso de urbanização da sociedade europ�ia, que praticamente vai redesenhar os modos de relação social naquele continente, com posterior impacto em todo o globo.

A formação dos estados nacionais na Europa moderna produziu, de certa maneira, unidades muitas vezes artificiais, fazendo com que grupos que se entendiam distintos culturalmente, passassem a pertencer a uma mesma identidade, agora configurando um estado nacional. Esse processo de formação dos estados nacionais não se deu de forma homogênea no continente europeu. A França e a Inglaterra tiveram a dianteira, e por outro lado, a It�lia e a Alemanha foram os �ltimos a realizarem suas unificações.

O historiador inglês Peter Burke observa que � justamente na Alemanha, um dos paises retardat�rios, onde começa a surgir uma s�rie de termos para definir essas produções do povo. Nesse sentido surge volkslied para designar canção popular, volksm�rchen para falar de conto popular e ainda outros termos surgidos posteriormente em outros pa�ses. De todo modo, a Alemanha teve a primazia na criação desses termos (Burke,1989:32).

Se a Alemanha teve precedência sobre os outros pa�ses europeus na elaboração desses novos termos, � na obra de J.G. Herder e dos irmãos Grimm onde melhor se definem as concepções e valorizações das produções populares. Para esses autores não era meramente uma questão de valoração est�tica daquelas produções, mas de encontrar nelas um tipo de expressão que estava em vias de desaparecimento por conta da ação da urbanização, e do pr�prio processo civilizat�rio, que de certa forma privilegiava o artificial em detrimento do natural. Esses autores viam na cultura popular, e mais precisamente na poesia popular um tipo de produção coletiva, desindividualizada, expressão dos anseios e desejos de toda a coletividade. Era uma "poesia da natureza", tão natural como as �rvores e montanhas. Encontramos aqui, aquele mesmo tipo de orientação que presidia a focalização de Rousseau quando distinguia cultura e civilização como par antit�tico.

Essa visão sobre a cultura popular, segundo Burke, tornou-se bastante aceita e rapidamente os setores cultos da sociedade passaram a se interessar por coleções de poesia popular, contos populares e m�sica popular. Esse movimento foi denominado pelo historiador inglês como "a descoberta do povo", e ele via uma s�rie de razões para que isso estivesse acontecendo naquele momento hist�rico. Eram elas: razões est�ticas, que se referiam a uma insubordinação contra o artificial na arte culta e conseq�ente valorização das formas simples; razões intelectuais, que tinham a ver com uma postura hostil para com o iluminismo, enquanto pensamento valorizador da razão em detrimento do sentimento e das emoções. Havia tamb�m ainda com relação ao aspecto intelectual um desprezo para com as regras cl�ssicas da dramaturgia, herdadas do pensamento aristot�lico. O pr�prio Herder e tamb�m Goethe se manifestaram apoiando o rompimento das unidades cl�ssicas afirmando que elas eram por demais inibidoras da espontaneidade e da imaginação; e por fim as razões pol�ticas, que estavam ligadas as hostilidades contra a França, e seu iluminismo, alimentadas por pa�ses como a Alemanha e a Espanha.

Sendo esse momento, como j� vimos, o momento da formação dos estados nacionais, a busca das identidades nacionais passava obrigatoriamente pelo "resgate" das tradições populares. Isso não quer dizer que os pesquisadores envolvidos tivessem obrigatoriamente que estar vinculados � questão nacionalista, pelo menos no que diz respeito ao aspecto pol�tico deste. Burke lembra, no entanto, que algumas edições de coleções populares de canções, foram largamente utilizadas com o fito de produzir sentimentos nacionalistas. Foi o caso da publicação de uma coleção intitulada Wunderhorn, publicada concomitantemente a invasão napoleônica na Alemanha. Havia a pretensão expressa dos editores em transformar aquela coleção em est�mulo para a consciência nacional alemã. Houve tamb�m a recomendação de um l�der prussiano, de que aquela publicação era um auxiliar na luta contra o invasor.

Podemos entender a partir do que vimos at� aqui, que a cultura popular pôde servir de elemento constituinte b�sico para a formação de uma unidade nacional, oferecendo a esta uma mem�ria a ser compartilhada e s�mbolos capazes de produzir um eficiente n�vel de coesão social. Por outro ela tamb�m pôde ser um empecilho, no sentido de que a constituição do estado nação, se consolidou se sobrepondo �s unidades culturais existentes tentando homogeneiz�-las, transformando-as em parte dessa nova estrutura nacional. Nesse sentido podemos perceber que a cultura popular serviu, contraditoriamente, como resistência cultural ao processo de unificação nacional. Esse talvez seja o caso de determinadas pr�ticas culturais levadas a cabo pelas "nações sem estado" , como catalães e bascos na Espanha, que acabam por se constituir como enclaves dentro da estrutura hegemônica do estado nacional espanhol.

Vimos anteriormente como românticos e iluministas se configuraram como par antit�tico quanto � abordagem da questão da cultura. No que diz respeito ao tema do popular não ser� diferente. Os iluministas valendo-se de concepções herdadas de per�odos anteriores viam na figura do povo uma realidade amb�gua. Ele representava a legitimação do governo civil nos ideais republicanos e dava corpo � democracia por um lado, e por outro representava ameaça a estabilidade pol�tica com seu �mpeto an�rquico e desestabilizador. O programa iluminista deixava clara a sua contradição, no que tange a presença do povo no novo cen�rio pol�tico que iria surgir a partir do final do s�culo XVIII. Segundo Jesus Martin Barbero em seu livro Dos meios �s mediações a figura do povo legitimava o poder da burguesia "na medida exata em que essa invocação articula sua exclusão da cultura" (Barbero, 2003:36) � essa exclusão que possibilitar� a conceituação do povo pela sua negatividade. O povo ser� definido então pelo que lhe falta e essa ausência de cultura se ligar� a id�ia de povo inculto, portanto desprovido de capacidade de ação pol�tica do ponto de vista de uma ação racional.

Ao contr�rio do programa iluminista que pensava o povo mais na pol�tica, o pensamento romântico pensava-o na cultura. A visão romântica estabelecia uma antinomia entre a imaginação, a espontaneidade, a vida comunit�ria e a simplicidade, como atributos do povo, e o racionalismo e o utilitarismo representado pela ilustração. A busca dos românticos para encontrar essa pureza e essa vida orgânica do povo, que faria frente aos artificialismos da vida burguesa preconizada pelos iluministas, deveria se dar pelo estudo da poesia popular. Produção essa que encarnava todo o esp�rito popular no seu mais alto grau de singeleza e pureza, representando no dizer de Peter Burke o verdadeiro "tesouro da vida", nessa empreitada de arqueologia romântica.

Toda essa discussão travada por românticos e iluministas ocorreu no s�culo XVIII, momento que representou uma etapa importante no que diz respeito ao quesito da assunção das massas no cen�rio pol�tico e cultural ocidental. A passagem dos s�culos não trouxe convergência nos discursos, ao contr�rio, a passagem dos anos trouxe, na verdade, mais lenha para os conflitos interpretativos desse fenômeno tipicamente moderno.

Na visão de Barbero a questão da emergência das massas e a configuração de uma sociedade de massa, j� estavam colocadas desde o s�culo XIX atrav�s de alguns pensadores. Critica, portanto, alguns analistas que situam nas d�cadas de 1930/1940 a ocorrência do referido fenômeno. Barbero passa em revista as teses de alguns pensadores que refletiram essa questão, dos quais destacamos: Tocqueville � para esse pensador francês a ameaça representada pelas massas não se dava de fora para dentro do sistema social, com as massas representando um perigo exterior. O povo era pensado como parte integrante da constituição social, do qual emanava o pr�prio sentido de justiça, legalidade etc. Tocqueville via nessa configuração o germe da democracia moderna e isso não lhe soava nada positivo. Assim se refere Barbero as an�lises de Tocqueville:

Se democr�tica � uma sociedade na qual desaparecem as antigas distinções de castas, categorias e classes, e na qual qualquer of�cio ou dignidade � acess�vel a todos, uma sociedade assim não pode não relegar a liberdade dos cidadãos e a independência individual a um plano secund�rio: o primeiro ocupar� sempre a vontade das maiorias. E desse modo o que vem a ter verdadeira importância não � aquele em que h� razão e virtude, mas aquele que � querido pela maioria, isto �; o que se impõe unicamente pela quantidade de pessoas. Dessa maneira o que constitui o princ�pio moderno do poder leg�timo acabar� legitimando a maior das tiranias" (Barbero,1997:57).

Percebe-se por essa leitura que a visão do pensador francês era um tanto carregada de pessimismo e assentada em certo aristocratismo, mas não podemos deixar de notar, at� mesmo uma determinada antevisão do que veio a se constituir no s�culo seguinte em nome desse tipo de poder constitu�do "em favor" da maioria. Pela esquerda o stalinismo realizou uma versão do marxismo e pela direita as experiências nazistas na Alemanha e o fascismo na It�lia, bem como diversos populismos nas Am�ricas do sul e central.

Barbero salienta ainda que subjazia a visão de Tocqueville um questionamento que foi da maior importância, a saber: "pode-se separar o movimento pela igualdade social e pol�tica do processo de homogeneização e uniformização cultural?". O problema para Barbero era que nos termos em que Tocqueville a colocava ela era representativa de um certo medo. Em contraponto com esse medo a visão do pensador alemão Engels refletia sobre os mesmos fatos e conclu�a que a massificação e homogeneização das formas de exploração, eram justamente o que produziria uma tomada de consciência por parte dos trabalhadores, produzindo uma poss�vel superação daquele modelo social.

Na mesma linha de Tocqueville, Barbero situa o pensamento de Stuart Mill para quem a sociedade constitui "uma vasta e dispersa agregação de indiv�duos isolados" e que a igualdade do ponto de vista civil poderia representar a possibilidade de uma vida mais orgânica, mas que de fato isso não acontece por causa do rompimento das relações hierarquizadas, e o que se tem então � uma degradação. H�, portanto nessa visão uma homologia entre o termo massa e a expressão "mediocridade coletiva".

Ap�s o movimento da comuna de Paris onde o poder da burguesia chegou a ser frontalmente questionado, passou a ser imperativo para essa classe não s� entender a relação massa/sociedade, mas de criar meios de controle social. Nesse sentido a psicologia ser� de grande valia para guiar os passos desse controle de forma mais eficiente e cient�fica. Atrav�s das t�cnicas de abordagem advindas da psicologia de massa, poder-se-ia entender a sua irracionalidade. � nessa perspectiva que surge o trabalho do psic�logo Gustave Le Bon. Para esse cientista a massa era inevit�vel em uma sociedade industrial, portanto se fazia mister a compreensão do que a fundamenta. Le Bon via como fundamento da massa o que ele chamava de alma coletiva, que fazia um indiv�duo agir em grupo de uma forma que ele não agiria individualmente. Acrecentava ainda que essa alma se formava atrav�s de uma "regressão at� um estado primitivo" (Barbero,1997:60).

Outro autores são citados por Barbero, tais como Oswald Splenger, Wilhelm Reich e outros, mas por motivo de objetividade descreveremos aqui apenas mais um, Ortega y Gasset. A visão desse autor � bastante pessimista e ele vê na onipresença das massas um sintoma de decadência da cultura ocidental. "Mediocridade e especialização" dão a tônica do s�culo XX e inclusive os espaços antes reservados �s minorias criativas se vêem tomados pelas massas. Em um dado momento Barbero cita o pr�prio Ortega y Gasset, quando esse se valendo de uma imagem bastante forte diz:

A rebelião das massas � a mesma coisa que Rathenau chamava de a invasão vertical dos b�rbaros. Ou seja; o retorno daquela definitiva idade m�dia que não � a hist�rica, pois não est� no passado, mas no futuro-presente e seus b�rbaros invadindo-nos agora verticalmente, quer dizer, de baixo para cima (Barbero,1997:65).

Com relação � questão cultural mais especificamente, Ortega y Gasset estabelece um conceito pelo qual cultura vai se definir pelas normas, ou seja, quanto mais norma mais cultura, e � essa incapacidade de se mover de forma racional e normativa que vai afastar as massas de uma produção cultural que valha esse nome. Em outras palavras Ortega y Gasset pensa a impossibilidade e a incapacidade da massa produzir cultura. Nesse mesmo sentido ele vê as produções art�sticas de vanguarda como uma solução que põe a nu a ignorância e a incapacidade da massa de entender e fruir esteticamente. Assim Barbero se refere:

O melhor dessa arte � que desmascara culturalmente as massas: frente a elas não podem fingir que gozam, tanto lhes aborrece e irrita. Cultura criativa, a nova arte � a vingança da minoria que, em meio do igualitarismo social e da massificação cultural, nos torna patente que ainda h� classes. E nessa distinção que separa � onde reside para Ortega a possibilidade mesma da sobrevivência da cultura" (Barbero,1997:66).

No balanço final da obra de Ortega y Gasset, Barbero afirma que apesar do aristocratismo desse autor algumas observações são bastante pertinentes. Cita por exemplo a visão de que o processo de produção vanguardista levar� a uma "desumanização" da arte, onde essa buscar� sua pureza, alheia aos sentimentalismos tão ao gosto da massa. Essa busca a si mesmo operada pela arte moderna, causar� um desconforto nos regimes totalit�rios, como os regimes stalinistas e nazistas, tão ciosos de uma produção art�stica que alimente seus intentos ideol�gicos.

A cr�tica dos pensadores de origem europ�ia se articula por um certo pessimismo, talvez com exceção do pensamento marxista, todos vêem nas movimentações das massas no cen�rio urbano e moderno, o risco da desestabilização e da decadência moral e cultural. O p�lo oposto a esse pensamento, são as an�lises dos pensadores americanos j� no s�culo XX. Assim se refere Barbero: "Para os te�ricos norte-americanos dos anos 1940-1950 a cultura de massa representa a afirmação e a aposta na sociedade de democracia completa" (Barbero,1997:69).

O primeiro te�rico americano a expressar positivamente a identificação de cultura de massa e democracia, foi Daniel Bell. Para esse pensador a nova sociedade de consumo trazia consigo uma nova revolução re-configurando as relações sociais em todo ocidente. Os lugares de mediação antes realizada por instituições como a fam�lia e a escola, passava agora para os meios de comunicação de massa, esses despontando como os novos formadores do imagin�rio social. Outros pensadores americanos, tais como Edward Shils e David Riesman tamb�m expressaram um profundo otimismo para com o advento da nova sociedade de massa, nascida do deslocamento da sociedade de produção para a sociedade de consumo.

No final do cap�tulo povo e massa na cultura: os marcos do debate Jes�s Martin-Barbero elabora uma breve cr�tica ao pensamento americano e reconhece algumas virtudes. Cr�tica por exemplo o fato de que mesmo superando uma visão aristocr�tica de cultura engendrada por pensadores europeus dos s�culos XIX e XX, os te�ricos americanos produziram uma an�lise cultural separada das relações de poder e que esse pensamento

Permaneceu amarrado ao idealismo liberal que desvincula a cultura do trabalho como espaços separados da necessidade e do prazer, e conduzindo-a a um culturalismo que acaba reduzindo a sociedade � cultura e a cultura ao consumo (Barbero,1997:73).

O aspecto positivo observado na abordagem americana fica por conta da constatação de que pela primeira vez, as massas modernas foram pensadas positivamente. Remetendo o estudo do popular não s� ao que elas produzem, mas tamb�m o que elas consomem. Pensar o fazer popular na sua contemporaneidade � para Barbero um desafio lançado pelos estudos americanos.

Do ponto de vista dos estudos hist�ricos, al�m do historiador inglês Peter Burke, gostar�amos de citar o italiano Carlo Ginzburg. Ginzburg faz na introdução do seu j� consagrado O queijo e os vermes: o cotidiano e as id�ias de um moleiro perseguido pela inquisição, um exame cr�tico de v�rios autores e obras que versaram sobre o tema da cultura popular. Para esse historiador os desn�veis culturais existentes nas ditas sociedades civilizadas foi o pressuposto necess�rio para o surgimento de disciplinas tais quais: Folclore, Antropologia social, Hist�ria das Tradições Populares e outras. No entanto, o uso da palavra cultura no intuito de descrever crenças, atitudes e comportamentos pr�prios das classes subalternas, foi de ocorrência relativamente tardia e surgiu do âmbito da Antropologia Cultural (Ginzburg,1987:16). Atrav�s de um movimento duplo reconhece-se como cultura tanto os fazeres de povos "ex�ticos", quanto �s pr�ticas das classes subalternas dos povos civilizados. Assim ele se expressa:

S� atrav�s do conceito de "cultura primitiva" � que se chegou de fato a reconhecer que aqueles indiv�duos outrora definidos de forma paternalista como "camadas inferiores dos povos civilizados" possu�am cultura. A consciência pesada do colonialismo se uniu assim � consciência pesada da opressão de classe (Ginzburg, 1987:17).

Foi por esse duplo movimento de descoberta ou de valorização do outro, ainda que de forma "paternalista" e atrav�s de uma "consciência pesada", que se pôde superar as antigas concepções de folclore como simples coleções de curiosidades, ou concepções que viam as pr�ticas culturais das camadas subalternas como sombras das ru�nas da cultura erudita.

Ginzburg constata que s� recentemente (a introdução foi escrita nos anos de 1970) a hist�ria vai se aproximar da tem�tica do popular. Isso se deveu em seu entendimento a duas motivações, a saber: uma ideol�gica e outra metodol�gica. A primeira diz respeito a certa concepção elitista que considera as "crenças e id�ias originais" apenas e exclusivamente originadas no âmbito das classes superiores, e que por um processo de difusão essas id�ias são transmitidas �s classes subalternas. Essa transmissão ocorre, por essa visão, com tais perdas e deformações, que a descredibiliza a ser estudada seriamente.

O aspecto metodol�gico fica por conta de que as culturas das classes subalternas são predominantemente orais, e mais ainda se recuarmos em s�culos passados. Diante da impossibilidade de entrevistar camponeses do s�culo XV, s� restaria ao historiador se valer de fontes escritas por indiv�duos que não pertenciam aos quadros dessas classes, e que muitas vezes se encontravam em franca oposição a elas. Inevitavelmente o historiador ter� em mãos aspectos da cultura popular mediado por filtros e intermedi�rios. A partir dessa constatação elenca uma s�rie de iniciativas que tentam superar essa problem�tica metodol�gica, e vemos exemplo disso no seu pr�prio trabalho em torno dos processos sofridos por um moleiro do s�culo XVI na região do Friuli, na It�lia. Para esse trabalho foram utilizados exclusivamente como fonte os documentos da inquisição que era então, a autora do processo.

No pref�cio da edição inglesa desse mesmo livro, Ginzburg inspirado pelos exemplos contidos na obra do cr�tico liter�rio russo Mikail Bakhtin, menciona o termo "circularidade", para falar da comunicabilidade entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas ocorrido na Europa pr�-industrial. Essa comunicação se dava de forma dial�gica, com "influência rec�proca" (Ginzburg, 1987:13).

O tamb�m historiador Robert Darnton, parece concordar com Ginzburg, no que diz respeito �s dificuldades de se ter acesso ao universo mental das camadas subalternas de s�culos passados. Em seu livro O grande massacre dos gatos enfrenta a tarefa de perscrutar o universo mental dos não "iluminados", em pleno momento de vigência do iluminismo. Seu m�todo, que denomina como sendo uma hist�ria de tendência etnogr�fica, tenta dar conta de analisar

As maneiras de pensar na França do s�culo XVIII. Tenta mostrar não apenas o que as pessoas pensavam, mas como pensavam � como interpretavam o mundo, conferiam-lhe significado e lhe infundiam emoção (Darton, 2001:21).

� guisa de explicação, Darton tenta diferenciar a hist�ria cultural, a qual se filia, da hist�ria das id�ias. Essa �ltima exibe a concatenação de um determinado pensamento formal de um fil�sofo para outro, ao passo que a primeira estuda como as pessoas das camadas subalternas da sociedade entendiam o mundo. Essa abordagem tenta explicitar as estrat�gias levadas a cabo por esses contingentes em sua cotidianidade. Ao contr�rio de um pensamento mais abstrato e l�gico de tipo intelectual, as "pessoas comuns pensam com coisas" ou com outros materiais que sua cultura disponibilize, tais como hist�rias, cerimônias, etc. (Darnton, 2001:XIV).

A noção de leitura atravessa todo o livro de Darnton, pois para ter acesso aos modos de pensar do "homem comum" do s�culo XVIII, o historiador norte-americano toma de empr�stimo as id�ias do antrop�logo Clifford Geertz, quando pensa a possibilidade de ler as pr�ticas sociais como se fossem textos. Esse procedimento foi criticado por Roger Chartier justamente por não perceber

A diferenciação entre a l�gica da produção textual ou da decifração de um texto utilizando as escritas e as pr�ticas ou estrat�gias de outras formas de construção, que são as pr�ticas cotidianas, habituais etc. (…) O essencial � pensar a irredutibilidade entre a l�gica da pr�tica e a l�gica do discurso que, tal como dizia Bourdieu, não se podem confundir (Chartier, 2005:03).

Chartier reconhece que muitas vezes, o historiador tem acesso �s pr�ticas sociais do passado atrav�s de textos. Mas o fundamental no trabalho do historiador vem a ser justamente o de procurar entender as relações entre o texto e as pr�ticas as quais ele se refere. Nesse sentido o texto deve ser pensado como mediação, e não deve, portanto, ser entendido como possuindo uma identidade imediata com as pr�ticas.

A partir das colocações de Chartier acima, podemos pensar uma dupla investida cr�tica desse historiador quanto � questão do texto. São elas: o texto deve ser entendido como fonte mediadora entre o historiador e a pr�tica a qual se refere, portador de estrat�gias, mas pass�vel de recepções m�ltiplas; e o texto como met�fora, quer dizer, critica a tendência, defendida por Geertz de se ler as diversas pr�ticas do mundo cultural como textos decifr�veis, sejam elas: ritos, mitos, narrativas, a cidade, e a pr�pria sociedade.

Em Cultura popular: revisitando um conceito historiogr�fico Roger Chartier faz suas pr�prias teorizações acerca do tema da cultura popular. Ele inicia suas an�lises de uma forma um tanto desconcertante, quando j� na primeira frase afirma que a cultura popular � uma categorização erudita. Ao mesmo tempo em que a afirmação � �bvia, ela explicita o que muitas vezes se encontra em estado latente, como possibilidade, mas não devidamente claro. Para al�m de enunciar as clivagens sociais, ela tamb�m explicita o poder de determinados agentes ou grupos, de nomear e definir outros grupos. Chartier lembra que os realizadores das pr�ticas nomeadas como populares não costumam se definir como tal, e n�s aqui acrescentamos que isso s� ocorre de maneira reflexa, como resultado da incorporação, por parte dos setores subalternos, de valores e conceitos oriundos dos setores hegemônicos da sociedade.

A t�tulo esquem�tico Chartier reduz, ressaltando o risco de simplificação, as diversas definições da cultura popular a dois modelos de abordagem e interpretação, a saber: o primeiro pensa a cultura popular como autônoma, com l�gica pr�pria e completamente irredut�vel � cultura letrada; o segundo focalizando as hierarquias existentes no mundo social, percebe a cultura popular em suas "dependências e carências em relação � cultura dos dominantes" (Chartier, 1995:179). Ressalta ainda que esse dois modos de apreensão não são, muitas vezes, excludentes, ocorrendo at� mesmo o uso das duas formas em um mesmo autor, ou numa mesma obra.

Chartier tamb�m problematiza as datações que tentam dar conta da iminente descaracterização, ou mesmo o desmantelamento da cultura popular. H� v�rias datações que tentam evidenciar suas ru�nas em função da ação da reforma protestante, da contra-reforma cat�lica, dos estados absolutistas, e j� no s�culo XIX com a constituição de uma cultura nacional nos pa�ses europeus, no momento de consolidação dos estados nacionais e republicanos. Acrescentar�amos aqui, mais um fator da suposta ru�na: a constituição, j� no s�culo XX, de um sistema de comunicação e entretenimento conhecido como ind�stria cultural, ou de comunicação de massa.

Chartier opera um deslocamento de focalização para enunciar que o problema da cultura popular não est� em datar o momento de sua ru�na, mas sim de identificar como se d� esse relacionamento entre as formas impostas e aculturantes, de um lado, e as t�ticas operadas pelos setores subalternos, por outro. H� para ele um espaço entre as injunções constrangedoras e a recepção rebelde e matreira.

Essa linha de racioc�nio vai levar Chartier a pensar nos usos, ou ainda melhor, nos modos de usar objetos e discursos etc. por parte do "popular", de modo que nesses usos, enquanto pr�ticas sociais, � que se possa encontrar o "popular". Dessa forma ele afirma que �

In�til querer identificar a cultura popular a partir da distribuição supostamente espec�fica de certos objetos ou modelos culturais. O que importa, de fato, tanto quanto sua repartição, sempre mais complexa do que parece, � sua apropriação pelos grupos ou indiv�duos. Não se pode mais aceitar acriticamente uma sociologia da distribuição que supõe implicitamente que � hierarquia das classes ou grupos corresponde uma hierarquia paralela das produções e dos h�bitos culturais (Chartier, 1975:184).

A questão dos usos diz respeito diretamente ao conceito de apropriação, e aqui chegamos ao que entendemos ser o coração da argumentação do historiador francês. � atrav�s dela, da apropriação, que se d� a operação de "produção de sentido" por parte dos setores não hegemônicos. � atrav�s dela que a recepção se torna "matreira" e "rebelde".

Com essa operação Chartier tenta superar as abordagens que qualificavam a cultura popular como universo simb�lico autônomo ou dependente.

A preocupação com a questão do uso, em detrimento de um recorte que privilegie o objeto, ou que pense o popular como "propriedade" de determinados grupos, tamb�m est� presente nas an�lises do antrop�logo N�stor Garcia Canclini. Canclini faz a cr�tica dos estudos folcl�ricos latino-americanos, tomando estes como tribut�rios de toda uma linha de pensamento folcl�rico que remonta, como j� vimos, ao final do s�culo XVIII na Europa. A despeito de todo esforço para situar as produções "populares" dentro da cultura nacional de seus pa�ses, essas iniciativas esbarravam em pelo menos duas dificuldades te�ricas e epistemol�gicas: o primeiro problema diz respeito � identificação do "folk" com determinadas comunidades isoladas "cujas t�cnicas simples e a pouca diferenciação social os preservariam de ameaças modernas" (Canclini, 2003:211). Nessa linha de racioc�nio Canclini afirma que os folcloristas se empenharam muito em recortar o objeto, com sua materialidade, do processo social que o gera.

O segundo problema diz respeito aos v�nculos dos antrop�logos e folcloristas latino-americanos com os movimentos nacionalistas de seus pa�ses. Essa convergência concorreu para transformar muitos desses pesquisadores em legitimadores de uma ordem que se configura a partir da construção de uma identidade nacional. O problema se agrava ainda mais quando determinados princ�pios tais como "deixemos de teoria; o importante � colecionar" (Canclini, 2003:212), de inspiração finlandesa, passa a fazer parte do modus operandi dos folcloristas mexicanos. Como desdobramento dessa linha de ação vai surgir "um empirismo raso", com grande ênfase nos materiais e pouca atenção �s relações sociais que informam a produção desses bens.

Percebemos aqui um duplo contato entre as formulações de N�stor Canclini e Roger Chartier: o historiador francês tamb�m afirma que não � poss�vel aceitar a id�ia de que haja um paralelismo entre uma hierarquia dos grupos sociais, de um lado, e uma hierarquia das produções e h�bitos culturais, do outro (Chartier, 1995:184). O outro item de convergência se d� na constatação de que o "popular" não se encontra nos objetos, mas nas pr�ticas sociais que lhe conforma.

Canclini parece estar mais interessado em captar a cultura popular em seu devir. Situa-la dentro das novas relações de produção e consumo, que se instaura em novos cen�rios nos quais a cultura popular se situa. A sua cr�tica tenta então evidenciar os aspectos ideol�gicos das operações conservacionista, ou de "resgate das tradições supostamente inalteradas" (Canclini, 2003:218). Trata-se, por essa linha de racioc�nio de indagar como as culturas populares estão se transformando, em face das novas interações com a modernidade.

Saltando agora nossas vistas para o campo da teoria liter�ria, vamos encontrar no te�rico russo Mikhail Bakhtin, um importante analista da questão da cultura popular, quando investiga esse assunto com pretensão de encontrar nele, as matrizes da obra do escritor francês François Rabeleis. Para situar o leitor na problem�tica do autor renascentista, Bakhtin tenta produzir uma teorização do grotesco e da cultura carnavalesca, tomando estes como peças chaves para a compreensão da cultura cômica popular da idade m�dia e do renascimento. Afirma que o riso popular � um dos aspectos mais importantes no que diz respeitos ao conjunto das criações populares, mas que a despeito disto, ele � um dos itens menos estudados. Faz uma cr�tica aos estudos folcl�ricos do s�culo XVIII, principalmente � figura de Johann Gottfried von Herder, pelo fato deste ter relegado o humor e a importância da praça p�blica, no conjunto das pr�ticas culturais populares (Bakhtin, 2002:03). Talvez aqui a cr�tica de Bakhtin, apesar dele não declarar isso explicitamente, recaia no fato de os pensadores românticos entenderem a relação entre campo e cidade como uma antinomia, na qual o campo representaria o ambiente natural por excelência, enquanto a cidade com seus requintes e planejamento racional, representaria o artif�cio, ou a negação da natureza. O habitante do campo, por essa �tica, estaria mais pr�ximo da natureza, longe dos desvios que a vida citadina produzia nas pessoas. Por outro lado, a cultura da praça p�blica, da qual nos fala Bakhtin, era a cultura da cidade, portanto fora do escopo dos românticos.

O cr�tico russo nos informa que o aspecto jocoso das manifestações tinha a capacidade de produzir uma esp�cie de duplicidade do real, ou ainda uma "dualidade do mundo". Essa potência transfiguradora se confrontava com as formas de culto e cerimônias circunspectas do per�odo medieval. Ela tinha por esse entendimento um car�ter de oposição � cultura oficial (Bakhtin, 2002:03).

Bakhtin sem declinar quais sociedades, ou produzir alguma datação mais espec�fica, informa que essa potência de duplicidade da percepção do real, contida na cultura cômica popular na idade m�dia e no renascimento, "j� existia no est�gio anterior da civilização primitiva" (Bakhtin, 2002:05). O que ocorria, no entanto, � que nesse momento primitivo cuja formação social desconhecia a separação de classes e mesmo a ocorrência do Estado, fazia conviver aspectos s�rios e cômicos de uma mesma realidade. Aos aspectos divinos ou her�icos, por exemplo, correspondia uma s�rie de esc�rnios e zombarias, e ambos eram igualmente sagrados e oficiais.

Mesmo posteriormente em formações sociais como o do Estado romano, ainda vai se encontrar ecos dessas antigas pr�ticas nas cerimônias de triunfo, e em funerais. No primeiro fazem-se par�dias dos gestos her�icos do vencedor, e no segundo chorava-se tanto quanto se ridicularizava o finado.

� posteriormente com o desenvolvimento das sociedades de classes que decai o status quo ante dos aspectos inerentes ao riso. A partir da� a cultura cômica popular vai se constituir enquanto instrumento profundo de expressão de visão do mundo das camadas inferiores da sociedade. Apesar de permitida, essa cultura se constituir� como não-oficial. Ela quase sempre estar� relacionada com elementos do poder e da igreja, mas sempre compondo um duplo ris�vel dessas pr�ticas, sempre apontando para a constituição de um outro mundo.

Não obstante o car�ter de oposição que a cultura cômica assumiu frente � cultura oficial no per�odo feudal, Bakhtin nos informa que at� aproximadamente o s�culo VIII, havia muita tolerância por parte da igreja, ocorrendo mesmo ampla participação de setores eclesi�sticos nas festas populares. Essas festas eram repletas de par�dias da hist�ria sagrada, tais como a "festa do asno", que contando a hist�ria do menino Jesus, dava mais ênfase ao jumento do que a Maria e ao pr�prio Jesus. Essa passagem est� totalmente de acordo com os exemplos dados por Peter Burke no seu j� citado: Cultura popular na idade moderna, quando nos fala do compartilhamento cultural entre a pequena e grande tradição, com o adendo de que a farta exemplificação de Burke no que diz respeito � inter-relação das culturas avança pela idade moderna.

� evidente a d�marche te�rica de Bakhtin, em captar os aspectos principais da cultura cômica popular da idade m�dia e do renascimento. � ineg�vel tamb�m o vigor e a abrangência de suas pesquisas, que se encaminham no sentido de demonstrar a importância de Rabelais, como grande corifeu da poderosa concepção de mundo contida no universo popular. Mas � imposs�vel não perceber como o cr�tico liter�rio russo se coloca entre os pensadores que datam, no seu caso, a partir do s�culo XVII as ru�nas da "genu�na" cultura popular. A partir de uma concepção burguesa do mundo que vai se estabelecendo por volta do s�culo XVI e XVII, Bakhtin afirma que vai ocorrer uma degeneração dos valores de base que animam a concepção popular. � nesse sentido que vai surgir um grotesco estilizado, est�tico, completamente diferente do grotesco dinâmico e ambivalente do renascimento (Bakhtin, 2002:47).

A pergunta que podemos fazer a essa altura, amparado nas posições de Roger Chartier, no j� citado texto e Michel Foucault na Microf�sica do poder, � se não houve por parte do cr�tico russo um discurso de certa forma "essencializante" da cultura popular. Sem perceber as pr�ticas ligadas a esse universo em seu devir hist�rico, em suas poss�veis re-configurações atendendo ao novo momento, e as novas relações de poder que se estabelecia na sociedade de classes de configuração burguesa. � certo que Bakhtin se refere mais diretamente as perdas ocorridas no âmbito da literatura. � nesse campo que ele observa como uma linhagem liter�ria profundamente enraizada em uma tradição popular viva e dinâmica, cujas expressões maiores se encontravam em Rabelais, Cervantes e Shakespeare, � rompida com o advento de uma est�tica mais "abstrata" dos s�culos XVII em diante. Mas não � poss�vel passar despercebido, como j� no final de seu livro, Bakhtin s� se refere ao passado para falar da necessidade de se compreender a cultura popular para entender a "vida e a luta cultural" dos povos. Ele diz:

Cada �poca da hist�ria mundial teve o seu reflexo na cultura popular. Em todas as �pocas do passado existiu a praça p�blica cheia de uma multidão a rir, aquela que o usurpador via no seu pesadelo (…) repetimos, cada um dos atos da hist�ria mundial foi acompanhado pelos risos do coro (Bakhtin,2002:419, grifo nosso).

Da� as nossas perguntas: a cultura popular deixou de ter, como em "�pocas passadas" um car�ter contestador? Ela não existe mais? O "usurpador" com suas estrat�gias anulou as possibilidades t�ticas de resposta?

São, em nossa opinião, indagações pertinentes.

Cultura Popular no Brasil:

Os estudos sobre folclore e cultura popular no Brasil se iniciam, na segunda metade do s�culo XIX, sob os ausp�cios da construção de uma identidade nacional. � nessa trilha que se insinua o trabalho pioneiro de S�lvio Romero.

A id�ia de Estado Nacional formulada durante um longo per�odo na Europa, acabou por se definir no s�culo XVIII como um poderoso elemento de coesão e de coerção social. Ele configurou-se como a expressão moderna oriunda da correlação de forças, que estavam em jogo naquele momento na Europa. Na idade m�dia um homem se sentiria primeiramente cristão e s� depois se diria francês, essa situação se inverte fazendo com que a nacionalidade ocupe o primeiro item de hierarquia de identidade e pertencimento, relegando a identidade religiosa a um segundo plano (Moreira,1999:312-313).

O Brasil, pa�s integrado perifericamente no sistema capitalista internacional, tardou um pouco a discutir a questão nacional e � s� então no s�culo XIX, que se inicia por aqui a busca do car�ter e da identidade nacional. A fil�sofa Marilena Chau� em seu livro Brasil � mito fundador e sociedade autorit�ria, distingue os termos car�ter e identidade, e para expor essa diferença ela se vale de um esquema traçado pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, no qual esse pensador define o ano de 1830 como marco do aparecimento do termo nação no vocabul�rio pol�tico. Em sua periodização ele divisa três etapas: de 1830 a 1880 como "princ�pio de nacionalidade" momento em que se estabelece primordialmente a relação de nação e territ�rio cujo discurso se ligava � economia pol�tica liberal; a segunda etapa de 1880 a 1918 se estabelecia a "id�ia nacional" onde nação se ligava a l�ngua e cujos discursos provinham dos intelectuais pequeno-burgueses; e por �ltimo o per�odo de 1918 a 1950/1960 momento da "questão nacional" associada a consciência nacional e lealdades pol�ticas defendidas pelos estados e partidos pol�ticos.

A partir desse esquema elaborado por Hobsbawm, Marilena Chau� define a id�ia de car�ter nacional ligado ao "princ�pio de nacionalidade" (1830 a 1880) e � "id�ia nacional" (1880 a 1918). O car�ter poderia ser entendido como "disposição natural de um povo e sua expressão cultural" e aprofundando mais um pouco cita o tamb�m historiador Perry Anderson quando esse afirma que:

O conceito de car�ter � em princ�pio compreensivo, cobrindo todos os traços de um indiv�duo ou grupo; ele � auto-suficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e � mut�vel, permitindo modificações parciais ou gerais (Chau�,2000:21)

Nessa perspectiva de an�lise o car�ter � visto como uma ideologia, que percebe a realidade brasileira ora positiva, ora negativamente, mas sempre de um modo pleno e totalizado. Esse car�ter se constitui enquanto natureza, motivo pelo qual tem uma realidade determinada, onde cada elemento da composição �tnica, ou racial como se dizia então, tinha sua pr�pria caracter�stica, e a miscigenação por sua vez era tamb�m geradora de um car�ter, que conforme o autor (S�lvio Romero, Afonso Celso, Gilberto Freyre) era visto positiva ou negativamente. O car�ter era então visto em termos absolutos e não em comparação com outros povos, modo de abordagem que qualificou as an�lises que convergiram para a definição de uma identidade nacional brasileira. Esse conceito foi forjado pelo cotejamento do Brasil com as nações industrializadas, que compunham o n�cleo do desenvolvimento capitalista de então. A partir da comparação com esses pa�ses o Brasil era entendido como subdesenvolvido, sem uma burguesia nacional que implementasse um projeto de desenvolvimento, sem um proletariado apto a realizar um programa de enfrentamento com as elites. Ao contr�rio do car�ter a identidade nacional se constituiu como ausência e lacuna (Chau�,1996:28).

A discussão a cerca da questão da identidade nacional tem sido uma constante no Brasil. Ela toma caminhos diferenciados conforme a etapa do desenvolvimento do pensamento brasileiro ou os atores em cena. A an�lise acima, expressa por Marilena Chau� a t�tulo de diferenciação do car�ter e da identidade nacional, corresponde a apenas uma das argumentações.

No livro Cultura brasileira e identidade nacional, Renato Ortiz define alguns pontos de inflexão da conceituação do nacional no Brasil. Ele escreve que primeiramente as discussões estavam ligadas a questão do car�ter nacional, como distinguiu Marilena Chau�, para depois se concentrar propriamente em torno da identidade nacional. Ortiz indica que � no s�culo XIX que se inicia o debate em torno do car�ter brasileiro, nesse momento os intelectuais brasileiros envolvidos com essas formulações estavam muito influenciados pelas teses "raciol�gicas" e evolucionistas, tão em evidência naquele momento. Três autores são arrolados para serem definidos como fundadores das Ciências Sociais no Brasil. São eles: S�lvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Ortiz aponta que o binômio raça/clima, se constituiu para esses três pensadores, como um verdadeiro paradigma orientador de suas teses. S�lvio Romero tomou por base as an�lises de um historiador inglês chamado Buckle, para quem as civilizações se definiam a partir de fatores como calor, umidade, fertilidade da terra etc. chegou-se a ponto de afirmar que a incapacidade civilizat�ria do Brasil devia-se a um tipo de vento que t�nhamos por aqui: os ventos al�sios. � uma explicação que pode nos parecer pueril, mas que não s� contava com o benepl�cito dos setores pensantes de então, como reivindicava para si uma base cient�fica.

O fator racial estava na ordem no dia na medida em que naquele momento ocorria um significativo aporte de contingentes populacionais vindos da Europa. Na verdade para S�lvio Romero essa questão era ainda mais determinante do que a questão do clima, e a� Ortiz chama a atenção ao fato de que para Romero as teses de Buckle apesar de corretas estavam incompletas, concorrendo então para o seu melhor acabamento a associação com a questão da raça. Silvio Romero se opunha a visão de miscigenação produzida pelo romantismo. Essa visão exclu�a o negro e idealizava demais a figura do �ndio. Ortiz explica que antes da abolição da escravatura o negro estava completamente ausente das formulações te�ricas do pensamento brasileiro. � somente com o processo do fim da escravidão que o quadro vai se transformar, e o negro vai aparecer como personagem importante na dinâmica da mestiçagem brasileira, sendo entendido por Silvio Romero e Nina Rodrigues como at� mais importante que o �ndio.

A miscigenação brasileira ser� entendida, a partir das cr�ticas de S�lvio Romero ao romantismo, como o cruzamento de três raças, a saber, a raça branca europ�ia, o negro africano e o �ndio aut�ctone. Para os três autores citados por Ortiz, no entanto, o europeu era o primeiro colocado na hierarquia das três raças, uma vez que era o elemento civilizador por excelência. A partir desse momento a miscigenação vai exprimir mais do que uma realidade imediatamente constat�vel, mas uma exigência no sentido de ser um agente de aclimatação do europeu, que era , como j� dissemos, o agente civilizador. A mestiçagem por sua vez trazia algumas questões inconvenientes para aqueles pensadores. Assim Ortiz se refere a essa questão

O mestiço, enquanto produto do cruzamento entre raças desiguais, encerra, para os autores da �poca os defeitos e taras transmitidos pela herança biol�gica. A apatia, a imprevidência, o desequil�brio moral, e intelectual, a inconsistência, seriam dessa forma qualidades naturais do elemento brasileiro. A mestiçagem simb�lica traduz, assim, a realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto. Dentro dessa perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro s� pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional � na verdade uma utopia a ser realizada no futuro ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira. � na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os estigmas das �raças inferiores�, o que politicamente coloca a construção de um Estado nacional como meta e não como realidade presente (Ortiz,1994:21).

Ligado � raça e ao clima, mas ao mesmo tempo se descolando desses, vai surgir um outro binômio que atravessar� todo o s�culo servindo de fio condutor em outras tantas interpretações do Brasil. Esse binômio ser� reinterpretado sempre que as condições s�cio-pol�ticas assim necessitarem. Estamos falando do nacional-popular, peça chave para o entendimento das diversas explicações que tentaram dar conta de entender o Brasil, ou simplesmente servindo de base para formulações ideol�gicas elaboradas por grupos hegemônicos da sociedade brasileira.

� interessante notar como a busca do que seria o mais leg�timo representante de uma nacionalidade encontre nas produções populares a sua mais acabada expressão. assim foi para o movimento romântico na Europa do s�culo XVIII, e foi tamb�m aqui no Brasil, quando da investida em se localizar as "fontes originais" de nossa nacionalidade.

Apesar dos pensadores do s�culo XIX terem visto na mestiçagem uma possibilidade de solução para as caracter�sticas negativas que constitu�am boa parte da nossa formação racial, afinal negros e �ndios eram vistos como atrasados em relação ao branco europeu, restava um ranço pessimista no que diz respeito ao fatalismo que a abordagem desses pensadores continha. Uma configuração social estabelecida a partir de uma herança biol�gica dava pouca margem a mudanças, produzindo uma esp�cie de travejamento que teria de ser superado.

Segundo Renato Ortiz essa superação veio com o deslocamento da id�ia de raça para a de cultura. Esse momento coincide com um momento de intensas mudanças as quais o Brasil estava sendo submetido. As primeiras d�cadas do s�culo XX foram de intensa atividade intelectual e tamb�m de um surto de industrialização que transformaria radicalmente as relações sociais no pa�s.

A consagração do mestiço como ente nacional por excelência ocorre, segundo Ortiz, a partir da reelaboração, feita por Gilberto Freyre, das teses dos pensadores que o antecedeu, entre eles Silvio Romero. H� na obra de Gilberto Freyre, "Casa grande e senzala", o deslocamento do conceito de raça para o de cultura. Essa inflexão atendia sobremaneira as novas necessidades do momento hist�rico. Assim se refere Ortiz a obra de Freyre

Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que h� muito vinha sendo desenhada. S� que as condições sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira j� não mais se encontrava no num per�odo de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e at� um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plaus�vel e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambig�idades das teorias racistas, ao serem reelaboradas pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional (Ortiz,1994:41).

A partir da� podemos entender como o mito da democracia racial pode se consolidar enquanto ideologia e tamb�m como rito, pois eventos como os citados por Ortiz, como o carnaval e o futebol, podiam a partir de então serem a gestualização ou a ritualização do mito. Sobre a j� citada obra de Gilberto Freyre, Ortiz cunhou a feliz expressão de que ela serviu como "uma carteira de identidade para o brasileiro".

A partir dos anos 1930 com o governo de Get�lio Vargas a cultura passou a ser vista como um importante l�cus de interferência do estado no sentido de se produzir um ideal de homem brasileiro. A m�sica, atrav�s do samba, foi um desses lugares onde se travou um combate contra a malandragem, por exemplo. O Brasil entrava naquele momento em uma nova etapa de seu desenvolvimento, e os grupos hegemônicos sentiam a necessidade de estabelecer um imagin�rio que atendesse as expectativas do capitalismo emergente.

Em 1937 com o advento do Estado Novo h�, segundo a professora L�cia Lippi de Oliveira, uma reconceituação do "popular", no sentido de que o termo apresentava uma ambig�idade que o estado tentava equacionar. Por um lado o povo era positivo porque nele se encontrava a alma nacional, associando-se a isso o fato de ser espontâneo, autêntico, e puro. Por outro o povo era visto tamb�m como inconsciente, analfabeto, deseducado e precisando, pois, da ação do estado no sentido de educ�-lo e instru�-lo (Oliveira,1992:71). Para essa tarefa de "sentir" os interesses das massas e agir no sentido de satisfazê-la, o Estado Novo contava com seus intelectuais que atuariam entre outras frentes como na questão do "resgate" de tradições populares. As pesquisas advindas desse momento se constitu�ram como importantes fontes de informação e at� hoje servem de referência a quem se dedica ao tema da pesquisa de cultura popular. Alguns intelectuais do elenco modernista tiveram participação ativa, como no caso de Mario de Andrade.

A d�cada de 1950 inaugurar� um outro ciclo econômico e pol�tico, que por sua vez exigir� novas conceituações no que diz respeito ao nacional e o popular. O per�odo anterior foi denominado pelo economista Paul Singer como de dependência tolerada (Chau�,1996:34). Essa conceituação dizia respeito ao entendimento que as elites econômicas brasileiras aceitavam o modo como o Brasil foi integrado na divisão internacional do trabalho, cabendo a n�s a produção de bens agr�colas, tais como caf�, algodão, tabaco etc. Essa situação muda com a consolidação de uma burguesia nacional, com quem os intelectuais progressistas e engajados politicamente acreditavam ser poss�vel e necess�rio o estabelecimento de uma aliança, que visasse � superação de atraso que era identificada por essa elite pensante. O nacional desenvolvimentismo era então a ideologia que consagrava a necessidade de se estabelecer no plano nacional o desenvolvimento industrial, como solução para que nos integr�ssemos ao conjunto de nações desenvolvidas, e os pensadores que elaboraram essas teses estavam agrupados em torno do ISEB. Marilena Chau� afirma que as teses desse instituto surgem no momento em que as elites brasileiras passaram a entender a questão da dependência não mais como "consentimento", mas como "tolerância". Isso quer dizer que a partir dali iria se compreender a dependência como um dado pass�vel de uma transformação futura, de modo que sua aceitação era apenas estrat�gica.

A relação desse novo pensamento brasileiro com a cultura, vai se estabelecer atrav�s do ide�rio nacional-popular e da pr�pria reavaliação do conceito de cultura. Renato Ortiz afirma que nos anos 1930 o conceito de raça tinha cedido lugar ao de cultura, com a obra Casa grande e senzala de Gilberto Freyre. Essa transformação ocorreu sob os ausp�cios do culturalismo e da antropologia americana na figura de Franz Boas. A partir dos anos 1950, no entanto, o quadro cultural seria pensado dentro do quadro filos�fico e sociol�gico. A questão cultural era vista pelos isebianos a partir de categorias que os mesmos utilizavam para compreender a realidade nacional, são elas: cultura alienada, colonialismo e autenticidade. A condição colonial era vista pelos te�ricos dessa corrente como um dado importante da formação cultural brasileira e mais do que necess�rio era que essa condição fosse superada. Nesse sentido não era no passado que se deveriam buscar as fontes de uma nacionalidade genu�na, pura e imaculada. A cultura brasileira era percebida como um vir a ser. Nesse sentido a professora L�cia Lippi de Oliveira citando Maria Isaura Pereira da Costa esclarece que para os isebianos o homem brasileiro seria

Um homem sem passado, alienado no �ntimo do seu ser porque fora colonizado, ao qual haviam sido impostos conjuntos culturais transferidos do exterior; tornava-se urgente criar ou descobrir uma cultura nacional v�lida, que assim se apresentava como um projeto ligado ao futuro, como uma utopia do porvir que serviria de motor � ação (Queiroz apud Oliveira, 1992:71).

� dessa forma que vemos uma desvinculação entre cultura popular como folclore e identidade nacional, e se dissemos cultura popular como folclore � porque para esses pensadores rompia-se tamb�m a identidade entre esses dois termos. Folclore era a tradição ou o passado, e cultura popular, submetida ao conceito mais geral de cultura, era o presente e como tal, era a possibilidade de transformação e de se romper com o estado de subdesenvolvimento.

Essa visão instrumental da cultura popular vai desaguar como importante estrat�gia de um outro grupo, que nos anos 1960 ser� herdeiro, de certa forma, do pensamento isebiano. Trata-se do Centro Popular de Cultura � CPC. H� para os integrantes desse grupo uma distinção entre os construtos da cultura popular, a saber: a arte popular alienada, ou seja, a cultura popular tradicional identificada com o folclore; a arte popular como fruto da elaboração de profissionais e especialistas produzidas para o p�blico das grandes cidades; e por �ltimo a arte popular revolucion�ria tal qual propunha o CPC. A inspiração desse movimento era nitidamente vanguardista, onde os intelectuais trabalhariam no sentido de promover a consciência social dos estratos mais baixos da sociedade. Nessa visão o povo não seria capaz de sozinho produzir sua pr�pria "libertação". Vemos a� um paralelo com a visão desenvolvida nos anos 1930 quando da mesma forma, o governo getulista incentivava os intelectuais para que esses fossem ao encontro das produções da cultura popular, incorporando-a ao projeto de identidade nacional promovida pelo Estado Novo. Da mesma forma, nessa perspectiva, os intelectuais seriam agentes dessa operação e o povo entendido como incapaz, carecendo, portanto, de uma ação externa que viesse em sua ajuda. Evidente que as finalidades dos dois grupos comparados eram distintas, por�m as realizações esquem�ticas eram semelhantes.

A abordagem da questão da cultura popular feita pelos integrantes do CPC, não se encaminhava no sentido de produzir uma identificação desta com a nação, numa tentativa de construção de identidade nacional, como foi feito por outros grupos que pensavam de dentro do estado, como no caso dos intelectuais ligados ao DIP no Estado Novo. As teorias dos intelectuais do CPC eram formuladas de fora do aparelho do estado (o CPC era ligado a UNE � União Nacional dos Estudantes) e sua inclinação era a da transformação, da revolução. A atividade desse grupo se situou no per�odo de 1962 a 1964, quando foi interrompido pelo golpe militar.

A questão da cultura popular, al�m de denunciar as tentativas "escapistas" que tentavam mistificar o conceito de cultura, tamb�m se ligava a uma outra, a saber: a questão da necessidade da participação do intelectual nas lutas de seu tempo. Para Ferreira Gullar, intelectual e membro ativo do CPC

A expressão �cultura popular� surge como uma den�ncia dos conceitos culturais em voga que buscam esconder o seu car�ter de classe. Quando se fala em cultura popular acentua-se a necessidade de pôr a cultura a serviço do povo, isto �, dos interesses efetivos do pa�s. Em suma deixa-se clara a separação entre uma cultura desligado do povo, não-popular, e outra que se volta para ele e, com isso, coloca-se o problema da responsabilidade social do intelectual, o que o obriga a uma opção (Gullar, 1965:01).

O per�odo p�s-64 traz um dado novo na longa trajet�ria da questão do nacional, do popular e da identidade nacional. Para Renato Ortiz esse per�odo corresponde � emergência do que ele chama "criação de um mercado de bens simb�licos". Ele deixa claro que j� antes existia uma circulação a n�vel nacional de bens simb�licos, s� que não com tanta intensidade e significando tanto na composição do imagin�rio popular. Esse per�odo corresponde � implantação no Brasil de grandes empresas de comunicação que vão compor com o regime ditatorial uma verdadeira rede de solidariedade. Ortiz aponta que esse � o momento de um deslocamento na formulação identit�ria brasileira, pois a implantação da ind�stria cultural ir� produzir um equacionamento no qual se re-processar� a questão da identidade agora pelo vi�s da questão mercadol�gica. Assim se ele expressa

A ind�stria cultural adquire, portanto, a possibilidade de equacionar ima identidade nacional, mas reinterpretando-a em termos mercadol�gicos; a id�ia de �nação integrada� passa a representar a interligação dos consumidores potenciais espalhados pelo territ�rio nacional. Nesse sentido se pode afirmar que o nacional se identifica ao mercado; � correspondência que se fazia anteriormente, cultura nacional-popular, substitui-se uma outra, cultura mercado-consumo (Ortiz,1994:165).

Esse autor salienta ainda que a equivalência entre cultura popular de massa e cultura nacional, se processar� primeiramente no âmbito da televisão, mas não se restringir� a esta. Essa visão penetrar� praticamente todos os campos da cultura. � assim que o cinema tomar�, principalmente atrav�s da Embrafilme, o caminho do mercado, agindo no sentido de uma inflexão aos caminhos experimentais do cinema novo. Os que defendiam essa nova rota, argumentavam que a experiência anterior tinha afastado o p�blico dos cinemas, e que era preciso uma produção de f�cil assimilação, para que se viabilizasse um cinema verdadeiramente "popular". Podemos pensar a partir dos argumentos em defesa do cinema "popular" acima expostos, que h� uma equivalência entre eles e o pensamento daqueles te�ricos americanos que citamos no cap�tulo anterior, que viam a cultura de massa como �ndice de realização democr�tica. Observamos ainda o aspecto irônico dessa equivalência na medida em que sabemos que a aposta realizada pelos te�ricos americanos dizia respeito � consolidação, ou melhor, a identificação entre cultura de massa e democracia, e aqui no Brasil ela foi levada a cabo por um regime ditatorial.

CULTURA POPULAR: NOSSA INSERÇÃO NO TEMA

(AN�LISE DA FALA DE UM COLABORADOR LOCAL: Sr. ANTÔNIO MOURINHO)

O trabalho de pesquisa que ora desenvolvemos acontece em uma comunidade quilombola chamada Fazenda Machadinha, situada na cidade de Quissamã na região norte-fluminense. O nosso objeto de pesquisa � a atividade do tambor ou jongo desenvolvida por alguns moradores. Descreveremos brevemente como aconteceu essa aproximação, para depois nos determos na fala do Sr. Mourinho.

Nosso contato com o tema do jongo, e mais particularmente com o tambor de Machadinha, não ocorreu de forma muito linear. Quando da conclusão do curso de Licenciatura em M�sica na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, tivemos a oportunidade de estudar o jongo praticado na Serrinha, comunidade situada no bairro de Madureira no Rio de Janeiro. Essa pesquisa visava � elaboração de uma monografia para a conclusão do referido curso.

Nossa intenção nessa ocasião, era de estudar as estrat�gias de um grupo, cuja pr�tica musical se inscrevia dentro do que convencionalmente se chama de "cultura popular". Quer�amos entender, por exemplo, como a pr�tica do jongo, realizada naquela comunidade, ocorria dentro de um cen�rio contemporâneo sujeito aos impactos da globalização.

Apresentamos originalmente para o ingresso no Programa de P�s-graduação em M�sica na UNIRIO, o que entend�amos ser a continuação desse trabalho, ou, ainda melhor, um aprofundamento do mesmo. As discussões realizadas por conta das disciplinas cursadas no programa, e mais os di�logos com a Professora Elizabeth Travassos, orientadora desse trabalho, no entanto, nos levou ao que entendemos ser um trabalho mais original e relevante, qual seja, o de pesquisar uma comunidade cujo repert�rio e hist�ria ainda não tinha sido objeto de pesquisa.

A possibilidade nos parecia bastante alvissareira, mesmo sabendo que o jongo em Machadinha se encontrava aparentemente em estado de decl�nio. Ali�s, o fato dele se encontrar nesse est�gio j� por si suscitava uma s�rie de questões, que sempre acompanharam as discussões em torno do tema da cultura popular, a saber: o esforço preservacionista, o esp�rito de proteção que tanto animou os antiqu�rios do s�culo XVIII, na busca de preservar as hist�rias, as canções, as crenças etc. do povo iletrado da Europa naquele momento de industrialização.

Na d�cada de 1980 um grupo interdisciplinar a serviço do INEPAC, FUNARTE e Secretaria Municipal de Cultura de Quissamã, realizou uma pesquisa sobre v�rios aspectos da cultura local. Um dos resultados da pesquisa foi a elaboração de um livro intitulado Quissamã. Entre os v�rios temas abordados estavam duas manifestações musicais, o fado e o tambor. Este �ltimo foi estudado pela antrop�loga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, e o primeiro pela tamb�m antrop�loga Elizabeth Travassos. Sendo esta, orientadora do nosso trabalho, sugeriu que fôssemos fazer uma sondagem na Fazenda Machadinha, localidade onde esteve a equipe de pesquisa na d�cada de 1980, para saber o estado atual da manifestação jongueira na comunidade. Vale dizer que a manifestação do jongo � conhecida na fazenda Machadinha tamb�m pelo nome de tambor.

A t�tulo de investimento explorat�rio fizemos duas viagens �quela comunidade, onde procuramos os antigos informantes da d�cada de 1980. Indicado pelo Sr. Arnaldo Quieroz, antigo secret�rio de cultura e educação de Quissamã, fomos ao encontro de Sidney Morgado, um jornalista envolvido com questões de meio ambiente e cultura no munic�pio. Sidney foi o elo entre n�s e a comunidade de Machadinha. Na comunidade, sob um sol escaldante, fomos apresentados a alguns antigos moradores, que se mostraram muito receptivos, simp�ticos e dispostos a colaborar com nossa pesquisa.

D. Guilhermina, conhecida como "Cheiro" e o Sr. Antônio Mourinho, foram os dois primeiros moradores contatados por n�s, nesse primeiro momento. Com a primeira tivemos um encontro de aproximadamente 40 (quarenta) minutos na qual ela se mostrou bastante sol�cita, e tamb�m bastante segura quanto �s informações sobre o tambor. S� nos pareceu contradit�ria quando indag�vamos sobre a permanência da pr�tica do tambor na comunidade. Com muita ênfase ela repetia que o tambor ainda � praticado normalmente na comunidade. Mas quando insistimos mais um pouco perguntando quando foi a �ltima vez que ocorreu a dança, ela respondia: "ah, faz muito tempo". Pudemos compreender nessa afirmação de "Cheiro", que na sua visão o tambor ainda existe na medida em que as pessoas que o praticam, ou que o praticaram, e que conhecem os segredos da pr�tica, estão vivas e não esqueceram como se faz. O fato de h� muito tempo ele não ser praticado não � �ndice, na pr�tica, de decl�nio. Essas foram, no entanto, nossas impressões mais prim�rias. Muito ainda viria a acontecer de modo que ter�amos mais elementos para nossas an�lises. Est�vamos apenas começando.

Ficamos bastante surpresos quando na nossa segunda visita, vimos que a pr�tica do tambor estava sendo organizada por algumas pessoas de Machadinha, em associação com uma pessoa de fora da comunidade, com vistas � retomada das atividades da dança. Esse novo ponto de partida seguiria agora por novos caminhos, pois uma nova formatação estava sendo planejada. O tambor seria agora apresentado em forma de espet�culo, os seus participantes seriam remunerados com cachê para as apresentações, e cumpriria um papel na constituição de uma mem�ria cultural dentro de um projeto tur�stico da cidade de Quissamã.

Quanto ao contato com o Sr. Antônio Mourinho as coisas foram mais complexas. Sr. Mourinho, apesar do nome em diminutivo � um homem alto, de aproximadamente um metro e oitenta cent�metros de altura e acaboclado. No primeiro contato ele se mostrou muito sol�cito, demonstrando muito boa vontade em ser nosso colaborador. Disse-me que poderia contar com ele no que precisasse. Despediu-se com um forte abraço e um grande sorriso. Acontece que no nosso segundo contato, ele não lembrou bem de mim, e me recebeu com muita desconfiança. Naquele momento destilou toda sua raiva e seu sentimento de ser explorado, pois sendo eu um forasteiro estaria ali encarnando toda uma l�gica de espoliação contra a qual ele se insurgia. Em dado momento ele se refere ao fato de que em sendo ele conhecedor de uma tradição e de um conhecimento simb�lico, e nesse caso se referia � dança do fado, por que seu conhecimento não era valorizado, no sentido de ele ser remunerado para desempenhar aquela função? Houve um momento flagrante em que ele afirmou: "isso � porque � coisa de pobre, ningu�m d� valor". Nesse momento a fina percepção advinda da pr�tica do homem do povo, parecia ir ao encontro do historiador Roger Chartier quando afirma em seu texto Cultura popular: revisitando um conceito historiogr�fico, que não podemos

…considerar o leque das pr�ticas culturais como um sistema neutro de diferenças, como um conjunto de pr�ticas diversas, por�m equivalentes. Adotar tal perspectiva significaria esquecer que tanto os bens simb�licos como as pr�ticas culturais continuam sendo objetos de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contr�rio, sua desqualificação). (Chartier 1995:07)

Pode ser lido na manifestação do Sr. Mourinho, que mesmo quando uma manifestação dos setores subalternos se estabelece e se afirma enquanto discurso simb�lico, em meio �s referidas disputas as quais Chartier se refere, ainda assim, os sujeitos que atualizam esses discursos são desqualificados ou secundarizados.

Essa perspectiva tamb�m � contemplada pelo antrop�logo N�stor Garcia Canclini se refere �s abordagens românticas, e as que subsumem as culturas populares a um quadro mercadol�gico. As primeiras vêem de forma sentimental as produções culturais dos setores subalternos da sociedade, isolando-a e imaginando-a pura, quer dizer, livre da "contaminação" do pensamento das elites. As segundas enxergam as produções simb�licas da cultura popular como produtos, e a� essas produções são reificadas, ao mesmo tempo em que se opera o mecanismo de esquecimento dos sujeitos que a consagram, e at� mesmo os contextos nos quais se inserem as produções.

Para Canclini essa relação de consumo com a cultura popular, que ocorre principalmente no âmbito do turismo, agrega em si um discurso profundamente ideologizado. Afirma Canclini:

O que vê o turista: enfeite para comprar e decorar seu apartamento, cerimônias "selvagens", evidências de que sua sociedade � superior, s�mbolos de viagens ex�ticas a lugares remotos, portanto, do seu poder aquisitivo. A cultura � tratada de modo semelhante � natureza: um espet�culo. As praias ensolaradas e as danças ind�genas são vistas de maneira igual. O passado se mistura com o presente, as pessoas significam o mesmo que as pedras: uma cerimônia do dia dos mortos e uma pirâmide maia são cen�rios a serem fotografados (Canclini, 1983:11).

Retomaremos aqui as discussões conceituais em torno da definição de cultura feita por Canclini, que est� contida no in�cio do primeiro cap�tulo do nosso trabalho. Recordemos que Canclini faz a cr�tica do conceito de cultura advindo do relativismo cultural contido na antropologia cultural, justamente porque a abrangência da definição de cultura, que se por um lado avança no sentido de entender as crenças, costumes, conhecimentos, id�ias de uma determinada sociedade, como cultura, ela não d� conta de entender, ou explicar de como as diferenças se tornaram desigualdades entre as culturas, ou dentro de uma determinada formação social.

Podemos concordar que o conceito antropol�gico, e talvez mais particularmente da antropologia cultural, de cultura efetivou um deslocamento no sentido de pens�-la como

O complexo dos modos de vida, dos usos dos costumes, das estruturas e organizações familiares e sociais, das crenças do esp�rito, dos conhecimentos e das concepções dos valores que se encontram em cada agregado social: em palavras mais simples e mais breves, toda atividade do homem entendido como ser dotado de razão (Satriani, 1986:41).

Ao inv�s de pens�-la como at� o s�culo XVIII o foi, como nos disse Peter Burke, como erudição ou posse de conhecimento nas �reas de literatura, arte, m�sica, etc.

Concordamos com o Antrop�logo cultural italiano Luigi Satriani quando afirma que a ampliação do conceito de cultura operada nos marcos de sua disciplina, possibilitou uma nova visão sobre a pr�pria sociedade ocidental da qual faziam parte esses antrop�logos. Essa autocr�tica se tornou poss�vel quando do cotejamento das diferentes maneiras de organizar a vida social praticadas pelos diferentes grupos humanos. Mas a despeito desse avanço, faz-se necess�rio na visão de Canclini dar um passo a mais no sentido de explicitar as clivagens, constrangimentos e sujeições existentes dentro das formações sociais contemporâneas.

Voltando assim a fala de nosso colaborador, Sr. Mourinho, evidenciamos como ele sentiu na pele as contradições que dizem respeito ao lugar da cultura popular, nas disputas simb�licas do nosso tempo, e elaborou de forma contundente na frase anteriormente referida, aquilo que o historiador Roger Chartier e o antrop�logo N�stor Canclini detectaram em suas pesquisas e teorizações.

O tema da remuneração nos parece um eixo sobre o qual v�rias visões se entrecruzam. O Sr. Manoel "Gara�na" antigo jongueiro de Quissamã e tamb�m dançador de fado nos disse em entrevista a n�s concedida, que considera todo esse movimento de rearticulação do tambor muito positivo. Mas não deixa (com o assentimento de sua esposa ao lado) de lançar um olhar de censura sobre a irredutibilidade dos atuais tocadores e cantores de fado, em s� participar de algum evento se houver remuneração. Em um dado momento a esposa de Sr. Gara�na profere aquela famosa frase: "ah! Antigamente � que era bom, as pessoas tocavam porque gostavam, bastava dar comida e bebida". No entanto o fator remuneração �, como eles mesmos disseram, um elemento de est�mulo para a participação das crianças na dança do jongo, geralmente netos dos participantes mais velhos. � curioso que não haja no grupo de jongo pessoas de idade entre trinta e quarenta anos. Os mais velhos têm em torno de sessenta anos e os mais jovens são crianças e adolescentes. H� efetivamente uma lacuna et�ria. Isso aconteceu, em nosso entendimento, por conta do desprest�gio que a pr�tica vem tendo nos �ltimos 30 (trinta) anos. Pelo que pudemos apurar desde a d�cada de 1970, quando nosso colaborador Sr. G�lson chegou � comunidade, a pr�tica vem declinando. Os pesquisadores, aos quais nos referimos acima, detectaram que na d�cada de 1980 j� não mais se dançava o jongo com freq�ência, tendo que haver para tal, algum est�mulo externo.

H� no grupo do tambor de machadinha, questionamentos mais incisivos com relação aos valores. Um dos nossos colaboradores e um dos mais velhos dançadores do grupo, Sr. G�lson, nos disse em conversa reservada (não gravada), e isso não deixa de ser a nosso ver uma estrat�gia dissimulada de inconformismo, que considerava um pouco injusta a "tabela" elaborada pela "D. Darlene", que o remunera com valores inferiores aos tamboreiros. Ele alega que al�m de conhecer muitos "pontos" tamb�m conhece os toques do tambor e sabe dançar. Em v�rios momentos Sr. G�lson se refere �s mudanças ocorridas na pr�tica do tambor, cuja orientação � dada pela referida Darlene. Nessa fala Sr. G�lson mostra estar atento � questão das competências, e suas relações com a valorização pecuni�ria que esta pressupõe.

Em nossa �ltima visita a comunidade detectamos uma tentativa de uma das integrantes mais velhas, a D. Guilhermina (Cheiro) de não aceitar mais a liderança de Darlene. Apesar de não termos tido oportunidade de conversar com Cheiro, soubemos atrav�s de outros integrantes do grupo que h� por parte desta, uma insatisfação com relação aos valores, e a forma como as coisas estão encaminhadas. Segundo nos foi dito, Cheiro planeja a criação de um grupo alternativo ao atual.

Podemos perceber por toda essa movimentação que a postura dos setores populares, ou subalternos, frente aos hegemônicos não acontece de forma passiva. Eles estão sendo chamados a tomar parte em uma encenação na qual figurarão como personagens vivos de uma hist�ria cheia de arestas, mas que quer ser constru�da como alguma coisa que j� est� resolvida e equacionada. Que as contradições fazem parte do passado. Que hoje são todos partes de uma comunidade cujo destino comum os iguala e nivela. Michel Foucault nos mostra em A ordem do discurso os procedimentos de controle e exclusão operados dentro da sociedade hierarquizada contemporânea. Mostra-nos como os desn�veis dos discursos os hierarquizam em narrativas maiores e menores, e que o apagamento destes desn�veis s� pode acontecer como simulacro, ou como jogo ideol�gico que falseia as clivagens sociais, apresentando a sociedade como comunidade, ou grupo de iguais.

Ainda estão vivas na mem�ria do grupo, canções como a que ouvimos do Sr. Gara�na, ou ainda outras que se referem a personagens locais que não aceitaram passivamente o processo de escravidão, e que foram por isso condenados � morte. � essa a hist�ria que se conta de um certo Tobias, que ao se negar ser capataz preferindo ser escravo, foi punido exemplarmente pelos senhores com a forca. Não sabemos se h� algum vest�gio ou documentação desse processo. De todo modo, o que nos interessa aqui são as construções narrativas que estão na mem�ria do grupo, e que apontam para a construção de uma outra mem�ria, diferente daquela que pretende fazer t�bula rasa do passado, elidindo as relações conflituosas que o constitu�ram.

CONCLUSÃO:

O estudo que ora encerramos nos possibilitou ampliar sobremaneira a nossa visão em torno de um tema tão amplo e complexo como o da cultura popular. Atrav�s de um m�todo não cronol�gico e de cotejamento de textos, onde eles se cruzaram, se criticaram, possibilitou a iluminação de certos temas.

Vimos como o conceito de cultura sofreu uma ampliação no sentido de abarcar tanto as sociedades fora do mundo ocidental, quanto os grupos subalternos dentro dele, e que esse movimento de certa forma deu legitimidade aos estudos das pr�ticas culturais das camadas subalternas. Mas a despeito desse movimento ter produzido um descentramento na visão de mundo do ocidente, ela não conseguiu, como sugere N�stor Canclini, explicar as hierarquizações produzidas dentro das formações sociais ocidentais contemporâneas.

Pudemos tamb�m compreender a partir da leitura do historiador Roger Chartier, a possibilidade de pensar a cultura popular para al�m de sua materialização em objetos, ou em modelos culturais. � preciso então, ao contr�rio disso, encontrar o popular nos modos de uso e nas apropriações feitas pelos grupos não hegemônicos.

A id�ia de circularidade cultural expressa por Ginzburg, nos parece bem interessante, uma vez que ela tamb�m rompe com aquele esquematismo mencionado por Chartier, como modelos recorrentes de interpretação da cultura popular. Esses modelos tomam a cultura popular como totalmente autônomas da cultura letrada, ou a vê "em suas dependências e carências em relação � cultura letrada" (Chartier, 1995:179).

Com relação � cultura popular no Brasil, vimos como as teses iluministas e românticas de desdobraram por aqui. A ambig�idade na apreensão da categoria "povo" � flagrante na medida em que esta categoria serviu de esteio para a construção de uma essência nacional (românticos), e por outro lado ele era percebido pela sua negatividade, pela sua ignorância e inconsciência, necessitando por isso uma ação externa orientadora (iluministas).

Por fim nos pareceu bastante �til pensar os embates simb�licos e materiais que ora ocorrem na Fazenda Machadinha em torno do jongo, a luz das conceituações que estudamos para realização desse trabalho.

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Autor

Ricardo Moreno de Melo

Mestrando em musicologia pela UNIRIO, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

morenoricmelo[arroba]yahoo.com.br

�rea: Arte e Cultura

Elaborou as seguintes monografias no âmbito acadêmico:

    1. Jongo da Serrinha: Permanência de uma tradição banta no mundo globalizado. 2002.
    2. A m�sica e a questão do nacional, do popular e das identidades nacionais. 2003.
    3. Sambas e congadas: o papel da m�sica na construção de um espaço social para o negro no Brasil. 2004.
    4. M�sica popular e identidade nacional: sons da negritude e negociação simb�lica no Brasil. 2004.

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